sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Doce Fonte

Foi às 9 horas do horário de verão que o caminhão de açúcar tombou na marginal.

Todo o carregamento vazou, e o asfalto cinza foi coberto por minúsculas partículas de açúcar refinado.

Mais ou menos ao meio dia, quando o sol usa toda a sua energia como se não houvesse amanhã, a massa criada pelas 40 doces toneladas ganhou vida e começou a se multiplicar magicamente. De 15 em 15 minutos, mais cinco quilômetros de avenida eram encobertos.

Não tardou para que a polícia isolasse o local, que aumentava em progressão geométrica. Os carros que trafegavam tiveram que parar onde estavam. Felizmente, nem motoristas nem passageiros pareciam estressados ou nervosos. Alguns deixaram lá o carro e tomaram um ônibus para o trabalho e, outros, ficaram por ali mesmo vendo o que iria acontecer.

Não houve acidentes, com exceção dos dois primeiros carros que vinham logo depois do caminhão e mergulharam diretamente no açúcar. Os motoristas dos automóveis – que vinha sem passageiros – não tiveram ferimentos. E a amargura de terem perdido o carro definitivamente desapareceu milésimos de segundos após o acidente.

A situação foi controlada rapidamente. Por sorte, todas as autoridades que ali chegaram estavam de bom-humor. Dialogavam com calma e simpatia para saber quais seriam os procedimentos corretos em tal situação. Não se tratava de como remover o açúcar, mas sim de o que fazer com ele. Afinal, nem todos os grãos haviam entrado em contato com o asfalto sujo e, se eles eram capazes de se multiplicar, talvez todo o abastecimento açucareiro do país pudesse vir de lá.

Nunca mais ninguém teria que pagar por açúcar. Bastaria que cada um se dirigisse à estrada e pegasse o seu.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Que Fernando Pessoa fale por mim

Liberdade

Ai que prazer
não cumprir um dever.
Ter um livro para ler
e não o fazer!
Ler é maçada,
estudar é nada.
O sol doira sem literatura.
O rio corre bem ou mal,
sem edição original.
E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal
como tem tempo, não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto melhor é quando há bruma.
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

E mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças,
Nem consta que tivesse biblioteca...

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

no post today

trabalhei domingo. estou de folga.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

70ºC

- Esquentou, né?

- E como!

- Metade da minha família já morreu nessa brincadeira.

- Até que eles resistiram bem. Quanto? 50?

- 65.

- Pô, mas 65 graus é pra caramba! E só metade! Da minha, só restou eu.

- Só você?

- É, mas eles não resistiram nem os 45. Já me consolei.

- Eu ainda to meio abatido... Faz pouco tempo... Quero saber até quando eu vou resistir.

- Olha, tenho pra mim que quem chegou aos 70 graus fica vivo. Assim espero.

- Eu não espero não. No fim das contas acho que ta na hora da gente ir embora mesmo. O homem.

- Acho que o homem não vai embora, não. Tem criança nascendo até.

- Nascendo e morrendo.

- Não, tem criança viva e sem aparelho. Saiu hoje no jornal, você não leu? É a evolução, meu amigo. O homem agora resiste bem ao calor. E dizem por aí que daqui uns anos nem de água precisaremos.

- Acho que prefiro morrer.

- Eu não! Com esse tanto de gente que morreu, da até pra tentar começar de novo. Eu penso como se isso fosse um dilúvio, sabe?

- Sei. E nós somos exemplos de boas pessoas? Por que resistimos ao calor? Ah, sim, claro...

- Pelo menos tem emprego pra todo o mundo.

- Preferia estar desempregado e ter minha família comigo.

- Acho que você ainda está muito abalado.

- Sim, estou. E com cada vez mais calor.

- Calor? Sabe que até já sinto um pouco de frio?

- Faz sentido.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Contas que não batem

Na 8a série, minha professora de história disse que deveríamos estaudar, por dia, quatro horas de sua matéria. Era uma professora muito boa, mas que não entendia nada de matemática. Lembro que na mesma ocasião somei as matérias e, se estudassemos 4 horas de cada coisa, não restava tempo nem para ir para a escola.

O estranho é que mesmo hoje eu sinto que tudo precisa de um estudo de 4 horas por dia. E eu tenho cada vez mais "tudo" para estudar.

"A título de exemplo", minha professora da Letras quer que eu faça, sozinha, um TCC em um mês, só porque eu mal saí da tortura de escrever um em um ano, e em grupo!

Enfim, meus ombros estão tensos, minha cabeça está a mil e eu mal durmo a noite. E logo logo nada passa porque, como eu disse, o tempo todo aparece mais uma coisa a ser estudada.

Só espero que valha a pena!

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Herói moderno

O que torna, em São Paulo, uma pessoa qualquer em um herói:

- Ser assassinado

- Ser baleado

-Ser seqüestrado

- Levar uma surra

- Sofrer um acidente

- Dizer “Não fiz mais do que a minha obrigação” ao devolver uma carteira perdida.

- Dizer “Não fiz mais do que a minha obrigação” ao socorrer a vítima de um acidente

Não importa. Pode-se ter bom o mau coração. Ser honesto, ser desonesto. Ser egoísta, ser altruísta. Basta sofrer ou demonstrar suposta humildade. Ou, como diz uma pichação de muro: O herói é p cara quem não teve tempo de fugir.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Vontade de salvar vida

Apesar do calor de 30ºC, a piscina do prédio estava vazia pela manhã daquele sábado.

Sara aproveitou que já havia adiantado todo o dever de casa da segunda-feira – duas páginas de exercícios de enormes equações –, e foi para a piscina. Não sem antes convidar seu irmão mais novo.

- Biel, vamos na piscina comigo! Vem, agora!

Colocou a sunga no irmão de 4 anos, pôs biquíni, pegou bola, bóia e toalha, e desceu.

Biel queria brincar com a bola. Sara colocou nele as bóias de braço, já que as pequeninas pernas ainda não alcançavam o chão. A menina preferia tomar um pouco de sol ouvindo música, mas, como ela é quem tinha arrastado o irmão para o térreo, concordou em brincar um pouco.

Quinze minutos passados, rendeu-se:

- Biel, chega de bola. A Sara vai tomar um pouco de sol. Você pode brincar com a bola aqui fora se quiser, ta bom?

Enquanto tirava as bóias dos braços de Biel, pensou que talvez seria melhor deixá-las, caso o menino caísse na água. Mas lhe ocorreu: “Se ele cair, eu corro para socorrê-lo. Aí vou ser uma menina de 10 anos que já salvou uma vida. Legal isso. Vou ter salvado a vida do meu próprio irmão...”

E foi ouvindo música, sonhando na sensação de salvar uma vida. De aparecer em um programa de televisão... Até que a bola caiu na água.

Biel se aproximou da piscina para resgatá-la. Sara ficou de espreita, só observando a cena. Biel não alcançava a bola, Sara não dizia nada. Biel caiu na água.

Em menos de um segundo, Sara mergulhou na água para resgatar o irmão, que se encontrava a um centímetro da margem. Trouxe-o para cima e falou, como mãe:

- Você tem que tomar mais cuidado! Se eu não tivesse por perto, você poderia ter morrido.

Biel ouviu, e voltou a brincar com a bola.

Não houve programa de televisão nem nenhum reconhecimento, a não ser o da própria menina, que para sempre se sentiu feliz e orgulhosa por ter salvado a vida do irmão.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Quem eu era quando pequena

Nem todos os dentes eu tinha,
Mamãe me pôs para nadar.
Ia para água sem reclamar.
Conversava com o moço
Até a hora de ele me mergulhar
E quando me puxava de volta,
Com medo de que eu já estivesse sem ar
Sem perder tempo, voltava eu a falar.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Pérolas do 1o turno

Eleições 2008.

1º turno

7h30
- Senhora, por favor, aguarde aqui nesta sala. Não pode votar ainda, não começou.

- Mas é que eu sempre sou a primeira, quero ser a primeira.

- Tudo bem, senhora, a senhora será a primeira, mas ainda não. São 7h30, aguarde até as 8h, ok?

- Mas lá em cima já está cheio de gente.

- São pessoas que estão trabalhando. Aqui, por favor, sente-se.

11h (muita gente já votou, mas a sala está vazia)
- Olha, que legal! Vou ser a primeira a votar! Nunca fui a primeira a votar!

14h (ouvimos o som de prim duas vezes)
- Senhora
...
- Senhora, a votação já acabou, pode sair.

- Acabou já?

- Acabou. Já foram os dois barulhos, pode vir.

14h30

- Senhora
...
- Moça
...
- Moça, acabou, pode sair.
...
- Acabou, já foi, pode vir.

- Acabou? Mas eu só votei uma vez.

- Mas a máquina já apitou duas vezes, é porque você já votou duas vezes.

- Mas então está com problema.

- Não, você não ouviu dois barulhos? Um curto, quando vota pra vereador, e um mais comprido, quando vota pra prefeito.

- É vereador primeiro? Ixi, votei antes pra prefeito...

15h20

- Ai, esqueci o número do Kassab. Qual é?

- Desculpa, senhor, mas a gente não pode dizer.

- Mas qual é o problema?

- Não, é que a gente não pode dizer mesmo, mas se o senhor quiser perguntar pra qualquer pessoa da fila, ou ver lá fora...

- Mas sou eu que estou perguntando!

16h

- Oi, tudo bem com vocês? Então, o meu namorado já foi mesário e ele começou uma campanha de “Deixe o seu mesário feliz”. Então eu trouxe quatro bolinhos, vocês são em quatro, né? Olha, ta aqui.

--------------Faça parte você também da campanha “Deixe o seu mesário feliz”!

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

A ilustre visita do Governador

Naquele dia de verão, foi a vez de Pedro ser uma das oito pessoas que diariamente são assassinadas na cidade.

Foi a toa. Desse tipo de coisa que a gente nunca acha que nos pode acontecer. João estava no banco quando assaltantes invadiram o local e o fizeram refém. Ninguém achou mesmo que iriam matá-lo. Nem ele, nem sua família, nem a mídia, nem os policiais, nem a população. Mas mataram.

Ele não estava sozinho no momento de sua morte. Seu amigo José estava junto. Por algum motivo não divulgado, José também foi baleado. Talvez tenha reagido para salvar o amigo. A bala atingiu seu antebraço, que um dia depois, enquanto os médicos ainda tentavam salva a vida de Pedro, já estava intacto.

Com o assassinato na boca de toda a população, o governador achou melhor ir até o hospital prestar condolências ao amigo do morto. Achou-o deprimido e perguntou se podia fazer algo para ajudar.

- Gostaria de conhecer ao vivo a Daniela Cicarelli, respondeu José.

O pedido foi prontamente atendido. E eu ainda gostaria de saber como a Daniela Cicarelli diminuiria a dor de se perder um amigo. Mais: por que o amigo que teve um antebraço machucado merece a visita do governador e os amigos e familiares de todas as oito pessoas assassinadas por dia não merecem sequer uma carta de “Meus pêsames”?

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Calor

Tem muito sol na piscina do clube A Hebraica de São Paulo. E muita gente com muita energia. Corre-se muito lá, apesar do calor que amolece o corpo.

Muita criança, muita mãe, muitas sacolas e mochilas e toalhas. Muitas cadeiras, mas menos do que adultos e crianças e mochilas e sacolas.

Nessas cadeiras, repousam alguns homens, algumas mulheres, meia criança e uma infinidade de mochilas e sacolas que em nenhum momento tocam o chão.

Nesse chão, feito de plataformas de madeira, pelando, forrado por toalhas, dezenas de pessoas que chegaram depois das sacolas e mochilas tomam sol desconfortavelmente. Livros, bóias, revistas, protetores solares, jornais e celulares preenchem os poucos cantos vazios que restam.

Os livros, revistas e jornais abertos abafam um pouco o barulho. São de quem tem os dedos manchados com tinta de impressora, sensível a suor com protetor solar. As mochilas e sacolas, privilegiadas sob os poucos guarda-sóis, não suam nem têm protetor solar. Aquele lugar lhes pertence. Ninguém as enfrenta.

Dez cartazes cobrem as grades da área da piscina. Dizem "Não guarde lugar", mas só são visíveis a quem está no chão. Para quem está nas cadeiras e sob os guarda-sóis, eles desaparecem, como num passe de mágica.

Por todo o lado, um barulho que não tem começo nem fim. Pertencente à piscina, está sempre lá, e sempre igual, desde 1986, o mesmo barulho de água, mãe e criança. Na mesma intensidade, no mesmo tom, no mesmo ritmo, no mesmo cheiro de cloro com protetor solar lotados.

A piscina da Hebraica não é uma piscina. É um emaranhado apertado de gente seleta. O ar quente condensa arrogância, mas não atinge quem, mesmo no chão quente, com dedos coloridos de tinta e melado por suor, consegue sentir, com a ajuda do barulho infinito, um delicioso cheiro de infância.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Garganta seca

A- Me traz uma copo de água

B- Não.

A- Não?

B- Não.

A- Por que?

B- Porque eu deveria te trazer?

A- Porque eu tenho sede.

B- Pois eu também tenho sede.

A- Está bem, então traga dois copos de água.

B- Não.

A- Por que?

B- Por que eu deveria trazer?

A- Porque nós dois temos sede. Então um copo vai para mim e outro vai para você.

B- Mas eu não quero um copo.

A- Não tem sede?

B- Tenho.

Pausa

A- E não quer água?

B- Não sei.

A- O que você quer?

B- Eu?

A- É, você.

B- Eu não quero nada.

A- Mas não tem sede?

B- Tenho. (pausa) E você?

A- Eu também. Por isso te mandei buscar o copo de água.

B- Pois eu não vou buscar.

A- Vai ficar com sede?

B- Você também.

A- Não se importa de ficar com sede?

B- Não sei.

A- Aposto que se importa.

B- Já volto.

A- Onde vai?

B- Buscar água.

A- Finalmente.

...

A- Ué?! Cadê minha água?

B- Sua água?

A- A água que você ia buscar.

B- Ia não: fui.

Pausa

A- A água que você foi buscar.

B- Ah.

A- E então?

B- Bebi.

A- Bebeu?

B- É.

A- Por que?

B- Porque eu tava com sede.

A- Mas eu também estou com sede!

B- É ruim, né?

A- O quê?

B- Ter sede.

A- É. Agora vai me buscar água.

B- Agora?

A- É?

B- Por que?

A- Porque ainda estou com sede.

B- Coitado.

A- A água!

B- Onde?

A- Na cozinha, oras!

B- O que tem?

A- Eu quero.

B- O quê?

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Quando eu crescer, eu vou:

- Abrir um restaurante de sanduíches do tipo misto quente. Vai ter opção pra cada pessoa montar o seu próprio e cada um vai custar cerca de 3 reais. Esse lugar vai ser, ao mesmo tempo, uma sorveteria, com cara dos anos 50, mas não com cara de Fifties, porque vai ser pequeno e não barulhento. E não vão ter garçons. Eu é que vou servir, junto de algum sócio talvez.

- Abrir um pipocaria. Pipocas de todos os sabores possíveis e impossíveis. Para beber, vai ter raspadinha de Coca-Cola. Por que nunca mais vi raspadinha de Coca-Cola pra vender?

- Fazer um parque de diversões que você não precisa pagar a mais pra ir nos brinquedos que dão brinde. As pessoas vão poder escolher entre não pagar e não concorrer ao brinde, ou pagar e concorrer. Assim, nenhuma criança vai ficar triste porque não pode tentar acertar água na boca do palhaço.

- Abrir uma casa de cinema com duas salas para cada filme: a sala “pode atender celular, pode cochichar, pode fazer barulho de abrir bala”, e a sala “silêncio!!!”. Em ambas, só vai passar trailer de suspense ou terror quando o filme for de suspense ou terror.

Por enquanto, acho que é isso.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

O grito

Foi em Viena, numa manhã de verão, onde ouvi um grito desesperador. Certamente, foi o mais agudo, o mais apavorante, o mais estridente que já havia escutado na vida real e ao vivo.

Eu tomava o meu café-da-manhã sozinha. Eram já oito horas da manhã, e todos deveriam estar no refeitório do hotel de piso forrado com carpete avermelhado com estampas. Mas estavam atrasados.

Em todo o caso, me servi de café, iogurte de morango, pão, cream chease, um pedaço de bolo e alguma fruta. Estava meio infeliz com a comida. O legal de café-da-manhã em hotel grande é a variedade de frutas maduras, as porções de pão de queijo e os croissants de chocolate. Mas eu não estava no Brasil, e sim em Viena. As frutas eram sem-graça, ninguém sequer conhecia um pão de queijo e... não sei exatamente porquê, mas também não havia nenhum croissant de chocolate.

Fui para uma mesa vazia. Antes de me sentar, dei uma boa olhada ao redor para ter certeza de que ninguém havia chegado e, sem ter me visto, ido se instalar em outro lugar. Não vi ninguém, tive raiva, fiquei com vontade de dormir mais, fiquei com vontade de sair logo e ir explorar a cidade sozinha, sentei, comecei a cortar um melão branco e duro.

E então o escutei. O barulho. Era muito alto, não vinha do refeitório. Deveria vir do hall. Logo em seguida, alguém gritou “Help!!!”. Como todos os outros hóspedes, fiquei com medo e curiosa. Mais curiosa do que com medo. Mas ao contrário da maioria, não tive coragem de ir ver o que acontecera.

É impossível descrever o grito. Era certamente de uma mulher. E de dor. Certamente era de dor. Como se alguém tivesse sido esfaqueado, ou tivesse um membro do corpo amputado. Imaginei que um desses lustres enormes, estilo O Fantasma da Ópera, tivesse caído sobre alguém, que gritou e morreu. O carpete, agora, estaria banhado em sangue. Vai saber se a cabeça não estaria separada do corpo! Não, isso era demais. Mas uma perna era bem capaz... Não pude ver. E as pessoas do refeitório que iam olhar não voltavam! Deviam ter desmaiado com o que viram.

Ninguém dizia nada, minha família não chegava, a comida era ruim, eu queria ir embora, alguém tinha morrido, havia sangue no carpete do hotel... E minha irmã chegou.

- Oi, a mamãe não chegou ainda?

- Não, só estou eu.

- Eles devem ter se atrasado.

- É.

- Que que tem de bom pra comer?

- Nada. O iogurte ta razoável.

- Vou me servir.

- O que aconteceu lá?

- Onde?

- Lá fora.

- Como assim?

- Lá fora, no hall. Ouvi um grito. O que aconteceu?

- Ah, nada. Uma mulher escorregou e caiu. Machucou o braço. Deve ter torcido...

- Nossa, mas precisava gritar daquele jeito?

- Não sei, ela já tava caída quando eu cheguei.

- Que horror!

- Horror? Mas foi só um braço torcido.

- To falando do grito.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Um mundo ideal

Quis dar à postagem de número 100 um tom mais... musical!

Confesso que ela é quase uma bobagem. Uma brincadeira, vai.

Leia como se cantasse Um mundo ideal (A Whole New World), a música do Aladdin quando ele voa no tapete com a Jasmin.

Olha eu vou lhe mostrar
Como é belo esse mundo
Não tem trabalho ou estudo
E até dá pra descansar

Posso até namorar
Talvez também fazer compras
Os meus livros pra ler
São só os que eu quiser

Um mundo ideal
É um privilégio ter aqui
Ninguém pra nos dizer
Faça o tcc
Até parece um sonho

Um mundo ideal
Um mundo que eu nunca vi
E agora eu posso ver
e lhe dizer
Que nesse mundo novo eu vou dormir
(2ª voz: Que nesse mundo novo eu vou sorrir)

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Um desenho no rosto

Foi no primeiro dia em que um homem e uma mulher estiveram no planeta Terra.

Não sei se eram exatamente Eva e Adão, nem quem os colocou lá – se é que alguém o fez. Talvez já estivessem lá há tempos, mas no formato de crianças, e não de jovens. Sim, eram jovens.

O fato é que o dia estava muito quente, e essas duas pessoas banhavam-se em um riacho.

Então veio uma mosca e ficou rodeando a cabeça do homem. Ele ficou longos segundo tentando despistá-la, mas sem sucesso. Finalmente perdeu o equilíbrio e caio com o corpo todo no riacho, as pernas dançantes para cima.

E a mulher sentiu – não tenho certeza se pela primeira vez – seu rosto todo se contrair. Seus lábios forçavam-se um contra o outro e foram abrindo mais e mais, deixando pouco espaço para as bochechas que, por sua vez, foram ocupando o lugar dos olhos que por muito pouco não se fecharam.

Sem que ela pudesse conter, começou a emitir um som. Meio nasal, meio tosse. Seu nariz não parava de soltar ar em pequenos intervalos, sua barriga começou a doer de tantas contrações que realizara em tão pouco tempo.

Quando o homem retomou a si e viu a mulher em tal estado, também abriu seus lábios em forma de meia lua. Não teve tantas contrações e sons como a mulher, mas, sem que soubesse, era um sentimento igual ao dela, com menos intensidade, que tomava conta de seu espírito.

A partir desse dia, ambos começaram a inventar coisas que pudessem causar no outro e em si mesmos aquela estranha sensação, que hoje chamamos de felicidade. Foi a partir desse dia que o ser humano descobriu como é bom ouvir uma piada, ver uma palhaçada.

Não sei dizer com clareza, porém, qual foi o dia em que os ser humano se permitiu esquecer-se dessa delícia.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

O Dia do Perdão

Enquanto “rezam” com um livro na mão, o que passa pela cabeça de algumas (muitas) pessoas em algumas (muitas) sinagogas de São Paulo, em Iom Kipur – o Dia do Perdão?

Na ala das mulheres:

- Nossa, coitada da filha da Dona Betty, como está envelhecida!

- Olha como esse rabino é bonito... Será que é casado? Deve ser...

- Meu deus, mas isso não acaba nunca? Que enrolação!

- Fala que podemos nos sentar! Fala que podemos nos sentar! Não devia ter vindo de salto!

- Nossa, mas cada ano as pessoas vêm mais mal vestidas, não? Nem salto mais usam!

- Ih, esse penteado não ficou bom nessa senhora da frente... Talvez se ela desse uma tingida nos fios brancos...

- Não gostei dessa decoração. No ano passado tava mais bonita.

- Ai que fome... Acaba logo pra eu poder comer! Preciso comer! O jejum inclusive já deve ter acabado a essa hora... O que será que vai ter na casa da minha sogra? Podia ter lasanha... Hum... Uma lasanha cairia tão bem...

Na ala dos homens:

- Por que eu ainda venho de gravata? Por que inventaram a gravata?

- Essas meninas do coral já foram mais bonitinhas...

- Olha, o Elias ta aí. Com que carro será que ele veio hoje?

- Como as filhas do Nelson tão bonitas... Meu filho podia ir conversar com elas.

- Que bom que comprei esse lugares logo aqui na frente. Olha só, estou num dos melhores lugares. Que bom! Isso é que é ser bem-sucedido! Nem todo mundo consegue um lugar tão na frente!

- Acho que essa minha calça já ta muito velha. Ta até meio rasgada...

- Será que o Gabriel ta tomando bomba? Ele não era tão forte assim...

- Ai que fome... Acaba logo pra eu poder comer! Preciso comer! O jejum inclusive já deve ter acabado a essa hora... O que será que vai ter na casa da minha sogra? Podia ter lasanha... Hum... Uma lasanha cairia tão bem...

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Em São Luis do Maranhão

Em São Luis do Maranhão, lá na pracinha clara às 8 horas da noite, os pratos de 70 reais para duas pessoas são vendidos como água a um real para turistas suados, fatigados e fatigantes. É vendido também um barulho, que os garçons dos restaurantes chamam de Música Ao Vivo. Cada um da mesa deve pagar cerca de 7 reais, querendo ou não ouvir o barulho.

O lugar também funciona à tarde. Mas se algum turista cansar de almoçar mini pizza de 15 reais, pode perguntar a algum moço de roupas rasgadas – obviamente um maranhense – onde é que ele costuma comer.

Ele então te indicará um lugar escondido, ainda que bem próximo. Indo em frente por ali, depois do restaurante com música ao vivo – Qual? Aquele ali? – Não. Aquele um pouco mais vazio. Não aquele, nem aquele ali... O das cadeiras com capas azuis. Esse. Indo em frente por ali, vira-se a segunda à direita. Depois primeira à esquerda, segunda à esquerda. O lugar parece uma casa. Tem que ir perguntando onde servem comida.

Ok. Frente, direita, esquerda – Estamos certo? Ele falou alguma coisa sobre uma feira com urubus? – Não. Mas deve ser por aqui. – Espero que não seja. São muitos urubus.

Chegando à provável rua certa, deve-se observar bem cada construção. Uma casa de tijolos mal construídos pode na verdade ser um restaurante. O prato custa 5 reais. Vem frango ou carne, arroz, feijão, macarrão e salada. Com exceção do frango ou da carne, o resto dá para duas pessoas. A Coca de dois litros sai quatro reais, mas o dono te oferece, caso você nunca tenha provado, um copo de suco de murici. Acha pouco um copo? Acredite, você não vai querer beber mais do que um gole. Ou melhor: vai se arrepender de ter dado um gole. Melhor gastar os quatro reais na Coca.

O negócio com o bom moço leva ainda vantagem em relação aos restaurantes da mini pizza porque lá não tem barulho – nem pago e nem de graça. No lugar, o simpático homem que te fez beber a pior coisa da sua vida bate um papo com os clientes. De onde são, o que fazem, como é a vida... Nada muito profundo, mas tudo muito gostoso.

Está dado o recado: quando for a São Luis do Maranhão, não deixe de almoçar no restaurante próximo à feira com urubus. Mas é melhor perguntar a localização exata, porque eu dei aqui direções aleatórias. A comida é boa e barata. Limpa, eu não posso garantir. Mas não tive nenhum problema intestinal, eu garanto. Apenas lembre-se de não beber suco de murici.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Desculpa do dia: sou mesária

Direto ao ponto:

Estou criativamente esgotada. Ou preguiçosa. Não sei direito.

Então pensei em me dar o luxo de não escrever, com essa desculpa. Mas também pensei que ainda não estou na última semana antes de entregar o maior trabalho da minha vida, e deveria deixar esse dia luxuoso só para quando for essa semana.

Aí lembrei que domingo fui mesária, e que mesários ganham um dia de folga no trabalho. E como o blog não deixa de ser um trabalho, posso usar esse dia de folga.

E como haverá segundo turno, eu serei mesária novamente. Aí terei mais um dia de folga antes da entrega do trabalho.

Resolvido, então. Por hoje, abandono-os. O domingo foi triste, comprido e chato. A terça vai ter que ser melhor do que isso.

Até amanhã!

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Neve no Reino da Morangolândia

Fazia sol no Reino da Morangolândia. Um sol gostoso. Suave, com sombra e água fresca.

As crianças-morangos brincavam de roda, enquanto os pais-morangos estavam deitados sob o sol para ganhar uma cor. Afinal, todos sabem que, quando se trata de um morango, quanto mais vermelhinho, melhor.

Então, como acontecia de tempos em tempos, a Grande Mão acolheu alguns e levou-os para serem banhados no Grande Rio Com Cachoeira.

Os escolhidos ficaram em estado de êxtase! Sempre quiseram ir banhar-se no Grande Rio Com Cachoeira. Era verdade que os que iam jamais voltavam. Mas e daí? A vida de um morango não é longa mesmo... Eles queriam mais era aproveitar e se jogar em tanta água.

E agora era a vez deles. Mergulharam e, então, foram levados para outro vale, bem pequeno, onde ficaram uns sobre os outros. De pé, cabeça para baixo, deitados, de cócoras...

De repente, sem mais nem menos, começou a nevar. Neve no Reino da Morangolândia! Isso nunca havia acontecido! E era uma neve tão docinha, mas tão docinha... até parecia açúcar. Os morangos começaram a sugar a neve, e só caía mais. Mais e mais, até que ficaram todos soterrados.

Sentiram então um estranho tremor, e um grito do Morango-Ligeirinho. Olharam para cima. Morango-Ligeirinho estava sendo levado para cima por um gigante prateado de quatro pernas, que nunca antes haviam visto. As pernas do gigante tinham perfurado o corpo do colega, que agora era dirigido à entrada de uma caverna escura, que se fechou tão logo ele entrou.

E, de um em um, todos os morangos foram perfurados pelo gigante e levados à caverna, que se abria e fechava a todo instante.

Ninguém nunca mais os viu, mas, até hoje, todos os morangos da Morangolândia esperam pelo dia de mergulhar no Grande Rio com Cachoeira.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Ela

- Como está o papai?

- Não sei o que te dizer. Até ontem estava como sempre, mal humorado, mas quieto. Essa manhã que acordou falante.

- Ué? Isso não é bom?

- Não sei... Ele só fala de uma moça. Deve ser uma namorada de infância, dos tempos do sítio. Diz que precisa dela, que não aguenta mais a vida sem ela. “Ela, ela, ela”, é só o que diz. Nem quis andar com o Heitor no Parque do Ibirapuera. Ele nunca recusa dar uma volta no parque.

- Mas ele também nunca gostou de andar neste calor. Depois do almoço vou para o clube. Quem sabe ele não gosta da idéia de dar um mergulho na piscina? Agora tem até uma aquecida.

- É...

Fazia 27º em São Paulo. Seu Luís, que tinha lá seus 80 e poucos anos, assistia, da janela de um prédio no Itaim, onde morava, seu neto Heitor chegar da caminhada. A solidão do rapaz apertou seu coração. Mas estava muito quente para sair na rua, e, afinal, desde que se mudara para o apartamento de Julia, sua filha mais velha, nunca recusou um convite do neto para passear.

Neste momento, ao meio-dia, Izabel, sua caçula, chegara para o almoço. Como sabia que as meninas não perdiam uma só oportunidade para discutir sua saúde física e mental, deixou-as conversando a sós na sala por um tempo, fingindo não ter escutado a campainha. Até que ouviu o chamado de Julia, e foi juntar-se à família.

Foi, mas com relutância. Estava cansado dos esforços das filhas para tirá-lo de casa. “É importante tomar ar fresco, papai”, diria Izabel. “O dia está tão lindo, e o médico disse que você precisa andar todos os dias”, diria Julia. E, em uníssono: “Vamos, papai!”

De fato, Seu Luís precisava de ar fresco. Mas hoje em dia, pensava, não se acha essa preciosidade em qualquer lugar. Lá sim. Lá onde estava ela... Ah, se pudesse ir ao seu encontro... Aí estaria completo. Aí inspiraria profunda e tranquilamente. Caminharia por horas, sem reclamar.

- Papai! – gritou Julia – o Heitor já chegou!

- Pronto, estou aqui. Fiz falta, Heitor?

- Que pergunta, vô!

- Não responde porque não fiz. Mas tudo bem. Sei que, para um jovem como você, caminhar na minha velocidade exige muita paciência e concentração.

- Vê, Bel? Responde assim para tudo. É um grosso! Para quê ser sarcático com o Heitor, papai? Ele quer o seu bem.

- Mas estou sendo sincero, Julia! Sarcástico... Acho que vocês não estão acostumados a ouvir palavras gentis ou bonitas. Acham sempre que o outro está ofendendo, querendo brigar. Talvez se vocês a conhecessem, se passassem um tempo com ela, seria diferente.

- Ela, ela... Tá bom, com ela seria diferente. Mas ela não existe mais, pelo visto. Então chega, papai.

- Não existe? Mas ontem mesmo ela saiu no jornal, numa matéria sobre reservas florestais.

- Como?

- To falando da cachoeira do sítio, onde nasci. Passei por momentos tão bons nela. Ficava bem no meio de um bosque, sabem? A gente fazia um pique-nique e depois se jogava nela. Aquilo sim era um parque. Aquilo sim era água de verdade, sem cloro! Ah, minha cachoeira, que saudades que tenho de você.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Um vestido e o mundo

(adaptação de piada do livro Fim de Partida, de Samuel Beckett)

É ainda julho quando uma jovem senhora se dá conta de que não possui em seu armário nenhum belo vestido para o Natal.

Ela então vai a uma costureira e encomenda um modelo razoavelmente simples, ao mesmo tempo que belo.

A costureira pede para que ela volte em um mês, para fazer a primeira prova.

Um mês depois, a senhora é apresentada para uma peça bastante bonita. Mas:

- Errei no zíper. Volte daqui uma semana e estará tudo ajustado perfeitamente.

“Errar com algo tão simples?”, pensa a senhora. Mas tudo bem, acontece.

Uma semana depois, a costureira volta a se desculpar. Agora, havia ajustado mal o decote. As rendas do dos lados estavam desiguais. Pediu então para que a senhora voltasse dentro de duas semanas, que o vestido estaria “um brinco!”

Puxa, mais duas semanas? Mas o que se vai fazer? E está mesmo bonito o vestido, vamos dar essa chance.

Passam duas semanas e a senhora encontra a costureira apressada:

- Já estou terminando, já estou terminando – diz. – É que achei melhor fazer um último ajuste na alças, mas se a senhora me der mais dez minutinhos...

Então, a senhora enfureceu-se, e disse:

- Minha cara: Deus fez o mundo em uma semana e você, em quase dois meses, não foi capaz de fazer apenas um vestido???

E a costureira respondeu, em tom de súplica:

- Mas senhora, repare bem: olhe para o mundo, e olhe para o seu vestido.

A senhora só pôde suspirar, sorrir, e concordar.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Que Tuiávii fale por mim

Tuiávii era o chefe de uma tribo indígena chamada Tiavéa. Ele esteve na Europa durante algum período da primeira metade do século XX – acredito eu - observando os costumes do homem branco, ou, como ele se refere, do “Papalagui”.

Com base nas observações, Tuiávii escreveu relatos destinados apenas à sua tribo, mas um contemporâneo seu, Erich Scheurmann, organizou-os em um livro, chamado O Papalagui.

Tive a felicidade de receber aulas de antropologia com um tremendo professor, que me apresentou a esse livro há uns três anos. Lembrei do livro recentemente e fui relê-lo. Gostei ainda mais do que já tinha gostado. Impressionei-me mais do que já havia me impressionado.

Sei que não vou resistir, e farei uma série de bons trechos d’O Papalagui aqui no blog.

Por hoje, contentem-se com este:

“É difícil dizer o que é profissão, mas todo Papalagui tem uma. É uma coisa que se deve ter muita alegria ao fazer, mas raramente isso acontece. Ter uma profissão significa fazer sempre a mesma coisa, e tantas vezes que se consegue fazê-la de olhos fechados e sem esforço algum. (...) Todo homem branco precisa ter uma profissão. (...)

Mas se o Papalagui, mais tarde, chega a perceber que prefere construir cabanas a tecer esteiras, dizem: “Ele errou de profissão” (...) Isso é uma coisa muito séria porque é contra a moral adotar, simplesmente, outra profissão. O Papalagui decente corre o risco de perder sua honra se disser: “Não posso fazer isto, não tenho nenhum prazer”. (...)

Não há, a bem dizer, coisa alguma que um homem seja capaz de fazer que o Papalagui não transforme em profissão. (...)

Ter profissão quer dizer: saber apenas correr ou apenas provar ou apenas cheirar ou apenas lutar, em todos os casos, saber apenas uma coisa. Esse só-saber-fazer-uma-coisa é uma grande fraqueza e um grande perigo porque qualquer um pode se ver, um dia, obrigado a remar numa canoa pela lagoa.(...)

Existem brancos que já não podem correr pois criam muita gordura no ventre, como os puaas [porco] porque têm de estar sempre parados, obrigados pela profissão; já não podem levantar e lançar um dardo pois suas mãos estão muito habituadas a segurar o osso que lhes serve para escrever e eles estão sempre sentados à sombra, só escrevendo tussi; não são capazes de dominar um cavalo selvagem porque estão sempre ocupados em olhar para as estrelas ou inventar idéias. (...)

É daí que vem a miséria do Papalagui. É agradável ir buscar água no riacho uma vez, até várias vezes por dia; mas quem tiver de ir buscá-la de manhã à noite, todos os dias, em todos os momentos, enquanto tiver forças, e isso sem cessar, afinal há de enfurecer-se, há de querer romper as correntes que o prendem, pois não há coisa que pese tanto ao homem quanto fazer sempre a mesma coisa (...)

Todos estão sempre comparando as suas profissões cheios de inveja e má-vontade; fala-se em profissões elevadas e baixas, embora todas sejam apenas atividades parciais(...) Mão, pé, cabeça são feitos para formarem um todo. Se todos os membros e sentidos trabalham juntos, o coração se alegrará, sadio; não acontecerá isso quando só uma parte tem vida e as outras estão mortas. Daí vem a confusão, o desespero, a doença. (...)

Mas o Papalagui nunca conseguiu nos fazer compreender por que havemos de trabalhar mais do que Deus exige para que possamos comer à vontade, cobrir a cabeça com um teto, nos divertimos com as festas da aldeia. (...) O Papalagui suspira quando fala no seu trabalho, como se uma carga o sufocasse; mas é cantando que os jovens samoanos vão para os campos de taro; cantando, as moças lavam as tangas na correnteza do riacho. O Grande Espírito não quer, certamente, que fiquemos cinzentos por causa das profissões, nem que nos arrastemos feito as tartarugas e os pequenos animais rasteiros da lagoa. Ele deseja que continuemos orgulhosos e tesos em tudo quanto fazemos; que não percamos a alegria de nossos olhos nem a agilidade dos nossos membros.”