sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Ela

- Como está o papai?

- Não sei o que te dizer. Até ontem estava como sempre, mal humorado, mas quieto. Essa manhã que acordou falante.

- Ué? Isso não é bom?

- Não sei... Ele só fala de uma moça. Deve ser uma namorada de infância, dos tempos do sítio. Diz que precisa dela, que não aguenta mais a vida sem ela. “Ela, ela, ela”, é só o que diz. Nem quis andar com o Heitor no Parque do Ibirapuera. Ele nunca recusa dar uma volta no parque.

- Mas ele também nunca gostou de andar neste calor. Depois do almoço vou para o clube. Quem sabe ele não gosta da idéia de dar um mergulho na piscina? Agora tem até uma aquecida.

- É...

Fazia 27º em São Paulo. Seu Luís, que tinha lá seus 80 e poucos anos, assistia, da janela de um prédio no Itaim, onde morava, seu neto Heitor chegar da caminhada. A solidão do rapaz apertou seu coração. Mas estava muito quente para sair na rua, e, afinal, desde que se mudara para o apartamento de Julia, sua filha mais velha, nunca recusou um convite do neto para passear.

Neste momento, ao meio-dia, Izabel, sua caçula, chegara para o almoço. Como sabia que as meninas não perdiam uma só oportunidade para discutir sua saúde física e mental, deixou-as conversando a sós na sala por um tempo, fingindo não ter escutado a campainha. Até que ouviu o chamado de Julia, e foi juntar-se à família.

Foi, mas com relutância. Estava cansado dos esforços das filhas para tirá-lo de casa. “É importante tomar ar fresco, papai”, diria Izabel. “O dia está tão lindo, e o médico disse que você precisa andar todos os dias”, diria Julia. E, em uníssono: “Vamos, papai!”

De fato, Seu Luís precisava de ar fresco. Mas hoje em dia, pensava, não se acha essa preciosidade em qualquer lugar. Lá sim. Lá onde estava ela... Ah, se pudesse ir ao seu encontro... Aí estaria completo. Aí inspiraria profunda e tranquilamente. Caminharia por horas, sem reclamar.

- Papai! – gritou Julia – o Heitor já chegou!

- Pronto, estou aqui. Fiz falta, Heitor?

- Que pergunta, vô!

- Não responde porque não fiz. Mas tudo bem. Sei que, para um jovem como você, caminhar na minha velocidade exige muita paciência e concentração.

- Vê, Bel? Responde assim para tudo. É um grosso! Para quê ser sarcático com o Heitor, papai? Ele quer o seu bem.

- Mas estou sendo sincero, Julia! Sarcástico... Acho que vocês não estão acostumados a ouvir palavras gentis ou bonitas. Acham sempre que o outro está ofendendo, querendo brigar. Talvez se vocês a conhecessem, se passassem um tempo com ela, seria diferente.

- Ela, ela... Tá bom, com ela seria diferente. Mas ela não existe mais, pelo visto. Então chega, papai.

- Não existe? Mas ontem mesmo ela saiu no jornal, numa matéria sobre reservas florestais.

- Como?

- To falando da cachoeira do sítio, onde nasci. Passei por momentos tão bons nela. Ficava bem no meio de um bosque, sabem? A gente fazia um pique-nique e depois se jogava nela. Aquilo sim era um parque. Aquilo sim era água de verdade, sem cloro! Ah, minha cachoeira, que saudades que tenho de você.

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