terça-feira, 30 de setembro de 2008

Ana volta ao médico

- Pois é, doutor, não gostei da tal ginástica.

- Mas você foi a quantas aulas?

- Uma. Foi o suficiente.

- E eu posso saber por que você não gostou? Você está me parecendo um pouco tensa. Eu até arriscaria dizer revoltada. Aconteceu alguma coisa?

- Não, não aconteceu nada não. É só que... Era uma aula muito parada, sabe? Estou acostumada com um dinamismo maior, com uma exigência maior.

- Você achou fácil a aula?

- Muito.

- Estranho. Sabe que, de todas as pacientes que eu indico para essa ginástica – e olha que são muitas – você foi a única que achou a aula fácil. A maioria inclusive se surpreende com a dificuldade que encontram. Você não quer tentar mais uma aula.

- Não. Deus me livre.

- Ok, ok. Está bem. Então sugiro fisioterapia. É mais caro e, penso eu, mais chato. Mas se você achou a ginástica tão insuportavelmente chata... É o que nos resta.

- Tem dança na fisioterapia?

- Acredito que não.

- Ótimo. Adorei. Obrigada, doutor.

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Ana na aula de ginástica

- Oi, qual é o seu nome?

- Ana.

- Você tem algum problema postural, alguma dor...?

- É, o médico falou... Lordose cervical e lombar.

- Trabalha muito?

- Bastante. A aula não costuma atrasar muito, né?

- Não, no máximo 10 minutos.

- Ai meu deus!

- Mas também se precisar você pode sair mais cedo, não tem problema. Bom, a gente vai começar agora com um aquecimento com música. Tem uma coreografia nova toda semana, mas não se preocupe porque com o tempo você pega o jeito. Você vai ver como a maioria já pegou o jeito. (A todos) Vamos começar?

A coreografia essa semana é um pouco mais acelerada. Ana, melhor você ficar atrás, para ir copiando das outras. Então, abre, atrás, abriu, juntou. Abre juntou, abre juntou. Esquerda. Abre, atrás, abriu juntou. Abre juntou, abre juntou. Isso Ana, só que você vai passar a perna por trás e não pela frente, assim ó.

Aí, contratempo com a direita, contratempo com a esquerda, e vamos girar pro lado esquerdo.

- (em pensamento) Vai, Ana, você é uma alta executiva! Consegue dar uns passinhos de dança. Ai, não, ta tudo errado. Como essa baixinha e gordinha na minha frente faz isso melhor que eu? Agora é pra direita, vai! Pra esquerda? Mas não era...? Onde estou? Abre, atrás, abriu... Meu deus, mas é muito rápido isso. E tinha que ter esse espelho na frente, to parecendo uma louca e ta todo o mundo me vendo. Aposto que a gordinha ta se divertindo comigo. Chega. Essa foi a primeira e última aula.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Ana no médico

- Então, Dona Ana, eu dei uma olhada nas suas radiografias e a senhora está com lordose cervical e lombar.

- Isso significa...

- São desvios posturais. É normal em pessoas que trabalham muito tempo sentadas, ou que passam por muita tensão.

- É... faz sentido, doutor. Mas e agora?

- O ideal seria a senhora pegar mais leve no trabalho.

- Ah, bem que eu gostaria, mas é impossível. Cheguei até onde estou, trabalhando desse jeito, e não pretendo abandonar meu posto, muito menos perder o respeito que tenho.

- É, eu imaginei. Bom, minha outra recomendação é que a senhora faça ginástica.

- Mas vou à academia três vezes por semana.

- É, não esse tipo de ginástica. É uma diferenciada. Uma espécie de RPG. Trabalha a postura, a coordenação motora... é bem interessante e certamente lhe fará bem. Está aqui o cartão. Faça uma aula e veja o que acha. Vamos nos falando, ok?

- Está certo.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Ana no trabalho

- Boa tarde, Dona Ana.

- Boa tarde.

- Como vai, Dona Ana?

- Bem, e você?

- Muito bem?

- Aceita um café, Dona Ana?

- Por favor, Victória.

- Boa tarde, Dona Ana. Aqui estão os papéis que a senhora pediu. E o Dr. Alan ligou perguntando se pode confirmar a consulta de hoje.

- Para que horas mesmo?

- 14h

- Pode confirmar sim, obrigada Telma.

- Eu é que agradeço, senhora.

(continua)

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Uma valsa

Estava tão cansado. O ônibus chacoalhava tanto. Queria estar sentado. Dormiria. Ou talvez não: teria medo de perder o ponto.

Suas pernas não agüentavam mais o peso leve do corpo. Os joelhos estavam profundamente flexionados e os olhos, se estivessem abertos, enxergariam o próprio quadril, tal era a angulação da nuca.

Apenas um braço em contato com a haste deixara de ser o suficiente para garantir a permanência minimamente ereta do corpo. Agora, mão direita e esquerda agarravam uma das poucas barras verticais e, ainda assim, a cada freada do motorista, seu tronco era lançado com ferocidade para a direita.

O pescoço começou a doer. Apoiou então também a cabeça na haste, pouco abaixo das mãos. A boca aberta, a bochecha colada àquela estrutura que tantas mãos, limpas, sujas e imundas, seguram diariamente.

Se ele não ligava? Não sei se chegou sequer a perceber que quase a beijava. Que a abraçava como se fosse uma amante. Que a guiava como se fosse a melhor parceira de dança que já tivera, valsando ao ritmo das partidas e freadas.

De repente, aquele já não era o único par de dançarinos do salão ambulante. O corredor estava tomado por homens e mulheres, jovens e velhos, que, agarrados às armações verde amareladas, ou amarela esverdeadas, quando não cinzentas, mexiam o quadril para um lado e para o outro, retomando o equilíbrio com um pisar duro e preciso.

Quanto a mim, não me sobrou lugar para segurar. Fui a juíza do concurso, examinando atentamente cada dupla, desequilibrando-me constrangedoramente hora sobre dançarinos à esquerda, hora sobre dançarinos à direita.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Trauma solucionado

Desde pequena, tenho aversão a dois alimentos: ovo e maionese. Ovo menos – se minha sobrevivência dependesse de comer um ovo, eu comeria. Quanto à maionese... já não tenho tanta certeza.

Foi engraçado como o tempo foi passando e a aversão à maionese só aumentava. Cheguei a experimentar ovo cozido – que não chegou a ser engolido – e mexido – não é tão mal assim. Mas, se quando pequena eu adorava comer patê de atum, gosto adquirido antes da aversão, na adolescência passei a só comer depois de esquentar, porque assim a maionese “desaparecia” um pouco. Hoje não como mesmo.

Se caía um pouco do negócio na minha mão, lavava com água corrente, sem esfregar uma mão na outra para não comprometer a limpa. Sim, chegava a esse ponto.

Minha mãe já quis que eu conversasse sobre isso na terapia. Mas meu pai achava que era só frescura. Mesmo assim, não me obrigaram a experimentar, mesmo porque, era como eu dizia: Maionese não faz bem pra saúde. É até bom ter aversão.

Depois de um tempo, descobri que não era só a maionese em si que me dava nojo, mas uma série de produtos de consistência parecida, como requeijão, iogurte e patê a base de ricota. Fiquei um bom tempo da minha vida sem coragem de comer essas coisas, mas hoje não tenho muito problema com isso – basta me certificar de que não há maionese na composição. Só o iogurte natural que até hoje não consegui experimentar – a semelhança é muito grande!

Buscando uma teoria para explicar a bizarrisse da filha, minha mãe lembrou de como, quando eu era bem pequena mesma, eu tinha nojo de bebês, porque eles regurgitavam. Achei até que fazia sentido, mas recentemente achei uma explicação bem melhor: foi um filme de terror que assisti bem pequena, na Sessão da Tarde, chamado A Coisa.

A Coisa tratava sobre uma substância branca e gosmenta que todos achavam deliciosa, mas que, não só era viva, como matava quem a ingeria. E lembro particularmente de uma cena em que as pessoas a ingeriam como se fosse iogurte. Pronto, só pode ser isso.

Lógico que não há certeza nenhuma, mas, depois de lembrar do filme, acho até que comeria maionese se minha sobrevivência dependesse disso...

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Sem reporter

O fechamento de agosto foi tão corrido e estressante que, no dia seguinte, ninguém foi trabalhar. O diretor de redação, que apareceu lá pelas quatro da tarde para buscar uma jaqueta esquecida, não se preocupou. Para uma revista mensal, o primeiro dia não é lá assim tão importante.

Ele só foi se preocupar mesmo quando voltou à editora uma semana depois e não encontrou ninguém. “Estão todos na rua?”, pensou, enquanto se dirigia à sua semi-sala. Assustou-se quando viu sua mesa coberta por post its. Todos avisando que no tal dia tal repórter não poderia trabalhar pois estava doente.

“Quem colocou esses papeis sobre minha mesa?” Gritou para o pessoal das outras publicações. A secretária da revista ao lado se manifestou: “Fui eu. O telefone não parava de tocar e tava incomodando o pessoal. Então tomei a liberdade de atender e passar os recados. Achei que o senhor fosse encontrá-los logo no primeiro dia – não imaginei que fosse se ausentar por uma semana. Achei prudente não incomodá-lo”. “Mas até meu estagiário?” “Foi inclusive o que me pareceu mais debilitado.”

Ainda antes de se entregar ao completo nervosismo, ligou de um em um para saber qual era o estado do ser. E era mal. Gripe, febre, tosse, falta de ar, vômitos. Ninguém poderia ir para o trabalho tão cedo.

O senhor diretor, então, pôs- se a ligar para todos os free-lancers que conhecia. Mas todos estavam já muito ocupados para receber trabalho de última hora. Lembrou de colegas da faculdade, de amigos desempregados, de familiares vagabundos. Nada. Ninguém queria ajudá-lo, com exceção de três que estavam de cama com rubéola.

Foi então que ele relaxou e riu. Era sonho. Não podia ser outra coisa se não um sonho. Todos doentes? Por tanto tempo assim? Sonho, pesadelo. Não era real.

Foi para casa pensando assim. Cochilou. Ouviu a porta abrir. Em seguida, sua mulher chamar seu nome. “Que bom que chegou. Eu to sonhando?” “Não, com certeza não”, respondeu rindo. Ele ligou novamente à redação q e quem atendeu foi a secretária da revista do lado. “Não ninguém chegou não.”

Sucedeu-se então aquela série de pensamentos que todo jornalista já imaginou que terá algum dia. “Minha revista não vai fechar. A culpa não é minha. Mas vão me culpar. O que eu faço? Não é minha culpa. Quem vai acredita em mim? Vou ser mandado embora. To arruinado.”

Muito pelo contrário, a edição daquele mês foi um sucesso de vendas. Cem mil exemplares vendidos. 35 mil vendidos em banca. A capa “Edição especial: retrospectiva – As matérias mais comentadas do ano, com os comentários do Diretor.” Trouxe uma mensagem importante à empresa jornalista da época: jornalista pode ficar doente.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Descanso

Não há trabalho perfeito
Todos possuem um defeito
Mas pra melhorar sei de um jeito
Estou falando de um leito
Onde, por uma hora, eu me deito
Tem travesseiro, televisão e livre tempo
Todos deveriam ter este direito

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Longo caminho até o 12o andar

Vinte-e-um. Alguém me explica por que raios este elevador sempre tem que estar no 21? Ai, quero chegar logo em casa. Acho que vou dar um dormidinha antes do almoço. Mas acho que antes vou pega alguma coisa pra comer... um pedaço de pão... ou um chocolate. Não, pão, quero salgado. Hum... será que ainda tem um pedaço do bolo? Se bem que uma pringles cairia bem... Então pego uma pringles. Mas melhor ir no banheiro antes. Ai, que vontade de ir no banheiro. Que sono. Que fome. Ah, até que enfim. Também agora espero que vá direto, sem parar em nenhum andar. Droga.

- Boa tarde.

- Boa tarde.

Aperta um andar depois do 12º, depois do 12º! Ué? Não vai apertar nenhum andar? Mas... mas... é que... o 12º é o meu andar. E a essa hora não tem ninguém em casa. Como deixaram alguém subir se ninguém pode ter atendido o interfone? Será que é a mulher que vai tingir o cabelo da minha mãe, que chegou mais cedo? E eu vou ter que fazer sala pra ela? Eu quero ir no banheiro antes! E comer! Não tem tanta pringles assim, não dá pra oferecer! E aposto que ela vai aceitar o último pedaço de bolo. Mas ela não tem cara de cabeleireira. Será que aconteceu alguma coisa e meus pais tão em casa? Ai meu deus... Ta chegando... Que que eu faço? Vou abrir a porta eu. Ué, mas ela nem vai se mexer, o que ta esperando?

- É... Tchau.

- Tchau. Ah, olha só, esqueci de apertar meu andar!

- Ah, eu também faço isso direto hehe

Ai, graças a deus!

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Um amigo de Gisele VIII (final)

Não queria magoá-la, mas queria menos ainda continuar casado. Durante o mês seguinte, fui um péssimo marido. Chegava em casa, ligava a televisão, perguntava o que tinha de jantar e ia dormir. Não dava bom-dia nem boa-noite. Tratei-a, enfim, como se fosse uma moça qualquer que freqüentasse minha casa.

Então uma noite tomei coragem e disse que queria conversar.

- Pode ser... – disse com um delicado sorriso no rosto - Mas não aqui em casa. Vamos dar uma volta, o céu está tão bonito.

Insisti para ficarmos, mas ela tanto teimou que acabei concordando.

Não havia muito movimento na rua. Apenas um ou outro carro passava de tempo em tempo. Enquanto circulávamos o quarteirão, comecei a dizer o quanto ela era especial para mim, e como seria difícil falar o que ela precisava saber:

- Não te amo mais.

Ela ficou calada. E ainda com o sorriso impresso em sua face. Continuou andando sem dizer uma palavra, um murmúrio sequer.

- Gi, fala alguma coisa.

Então ela segurou uma tábua de madeira que estava jogada no chão é me bateu. Centenas de vezes. Caí inconsciente e acordei no hospital, ela chorando sobre os meus pés, sendo abraçada pelos pais. Eu gritei para que ela saísse e me deixasse em paz. Disse ao bom casal que sua filha era uma assassina. E Gisele disse:

- Ah, não. Você também, não... Não fui eu, meu amor, foram os bandidos...

Foi quando o médico explicou a todos os presentes que por causa das batidas, eu podia ter sofrido algum problema de memória. Todos disseram já ter presenciado algo parecido, e me censuraram por continuar insistindo na culpa de Gisele. Finalmente, acharam melhor me internar aqui na clínica. Cá estou. E você? Você também parece bastante são para estar aqui.

- Pois é, meu caro. E acredito em cada detalhe de sua história. Sou o falecido marido de Gisele, ou melhor, um amigo de Gisele. A louca queria casar comigo, eu não aceitei, ela me encheu de pauladas. De resto, tudo aconteceu exatamente como com você, com uma diferença: algumas pessoas chegaram a acreditar em mim, e foram investigar a história. Mas a doida conseguiu provar, com falsas testemunhas, que era inocente. Agora senta aí porque, a partir do momento que diagnosticaram em você problemas mentais, nunca te acharão 100% são.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Um amigo de Gisele VII

Admito ter sido difícil, principalmente no início da vida conjugal, manter a postura romântica dos tempos do cortejo. Se Gisele não era repulsiva, também não me atraía em absoluto. Dia após dia, porém, eu vestia a máscara e olhava para ela como se fosse o meu maior tesouro. Ao mesmo tempo, tramava comigo mesmo qual seria a melhor maneira de chegar ao assunto crime. A ocasião perfeita não tardou a chegar.

Após um dia frio e chuvoso de muito trânsito, Gisele esqueceu a lasanha no forno, que queimou. Pôs-se a chorar compulsivamente, e lá fui eu consolá-la:

- Gigi, você não está chorando só por causa da lasanha. Sei que tem algo mais te deixando chateada, e já não é de hoje. Pode contar comigo. Se abre. O que te deixa sempre tão abatida?

- Não... é isso mesmo... Era o seu jantar. E eu arruinei tudo. Não quero te perder. Não posso te perder.

- Me perder? Mas e só uma lasanha, por que você me perderia?

- Você não entende...

- Não, não entendo. Então me explique, por favor.

- Além de você, só amei uma pessoa em toda a minha vida. E ela se foi...

- Te abandonou?

Ela baixou os olhos. Fez que não. Disse pra deixar para lá.

- Gi, fala pra mim, acho que vai te fazer bem desabafar. O que houve com ele?

- Foi assassinado. Uns bandidos. Bateram nele. E fugiram. Fiquei sozinha, e então a polícia chegou, e acharam que fui eu. E todo o mundo achou que fui eu. Não entendiam. Eu o amava. Não fui eu, não fui. É verdade. Mas não acreditavam, ninguém acreditava. A gente ia ter um filho, sabia? Estávamos com os papeis da adoção. Ia se chamar João, como o pai. João...

Ah, então estava tudo explicado. Acusada de um crime que não havia cometido. Pobre Gisele. Por isso tanto cuidado, tanto tormento... Na hora errada, no lugar errado.

Já era hora de pedir o divórcio.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Um amigo de Gisele VI

Minha vida era saber o crime de Gisele. Não me importava com mais nada além disso. Por isso me casei com a moça, quinze anos mais nova do que eu.

O raciocínio era simples: todos na família de Gisele pareciam saber a história. Então, para que eu também soubesse, bastava ser um deles. Bastava me casar com ela.

Há dois anos comecei a cortejá-la. De início, ela não pareceu me levar a sério. Dizia que que não era nem bonita e nem doce, mas sim sombria e estranha. Ligava para ela quase diariamente, sempre a elogiando, convidando-a a sair. Gisele nunca aceitava, mas percebi que as conversas ao telefone tornavam-se mais longas a cada dia.

Entendi isso como um progresso, e finalmente, no seu aniversário, escrevi uma carta, acompanhada de flores, chocolates e um livro do patinho feio. Sabia já seu ponto fraco.

“Gisele,

Não agüento mais essa angústia pela qual você me faz passar. Te amo, e sei que sou correspondido. Então por que não me aceita?

Não acredita no meu amor, é isso? É por causa disso que estou te dando este livro. Para que você acredite que ser diferente das outras mulheres não significa ser estranha, mas sim ter outra beleza. E é essa mesma beleza que fez com que eu me apaixonasse por você, não parasse de pensar em você nem mesmo por um segundo (...)

Por favor, me aceite. Estou com passagens compradas para a África. É para lá que vou se você não me quiser”.

No mesmo dia, já de madrugada, ela foi à minha casa. Recebi-a com um beijo carinhoso, mas fui surpreendido por uma Gisele intensa que, em menos de um minuto, já se encontrava deitada sobre minha cama. Dois meses depois, nos casamos.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Um amigo de Gisele V

Não queria dar bandeira. Achei prudente, após saber a senha secreta, esperar duas semanas para usá-la. Para quem já havia esperado dez anos, o que eram duas semanas?

Catorze dias depois, mal consegui dormir. Também não consegui comer, fazer a barba, ver meus e-mails...

Assim que cheguei ao trabalho, no horário normal – mais cedo chamaria a atenção – dei o login no arquivo de secretos. Em pesquisar, escrevi “Gisele Souza”. Nada encontrado. Tentei pelo outro sobrenome, e escrevi “Gisele Faria”. Também nada. Por mais de três horas, tudo o que eu fiz no trabalho foi escrever na busca de documentos palavras que poderiam me levar ao caso. Nada.

A depressão tomou conta de mim por cerca de um mês. Depois de tudo isso eu teria que desistir? Não podia, não ia agüentar.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Um amigo de Gisele IV

Minha vida passou a ter um único objetivo: descobrir o Caso Gisele. Estava impotente, porém. Não havia mais uma alma com quem eu pudesse falar. Gisele nunca sabia nada. Nem ela, nem seus pais.

Foi então que resolvi me tornar PM. Entrei para a Escola Militar. Obviamente, muitos me acharam louco. Afinal, eu já era um médico relativamente bem-sucedido. Mas enfrentei-os. Às milhares de perguntas sobre o por quê da minha “maluquice”, respondia ora “não sei”, ora “não convêm lhe dizer”.

E, assim, após dez anos eu já possuía a altoridade de que precisava para ter acesso aos arquivos mais sigilosos sobre crimes ocorridos no Brasil. Tratava-se, na verdade, de uma senha. ARQUIVOSCONFIDENCIAIS.

Como eu não pensara nisso antes?

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Um amigo de Gisele III

Minha curiosidade era tanta para descobrir se Gisele estava mesmo envolvida com algum crime, que cheguei a perder o sono por umas cinco noites, não seguidas, mas intercaladas.

Dei um google em seu nome, perguntei aos meus pais e irmãos se eles sabiam de algo, mas nada. Pensei até em ir à polícia, mas fiquei com medo de que eu acabasse como suspeito de uma história pela qual eu não tinha nada a ver - apenas uma curiosidade quase mortal.

Após um mês com a dúvida angustiante, resolvi ser cara de pau, e ir perguntar aos parentes mais próximos de Gisele se eles não sabiam de nada. Que perda de tempo! Quanta tortura.

- Quê? Envolvida em um crime? Quem te contou isso, Alberto? E acho bom você me falar pois já faz tempo que eu to desconfiada de certas pessoas, que não sabem mais o que pacto do silêncio significa.

Foi a avó de Gisele quem confirmou minhas suspeitas, sem, porém me tranqüilizar. Pelo contrário, fiquei ainda mais aflito. E quando a perguntei sobre qual teria sido o crime, ela respondeu "Olha, se não te passaram a informação completa, não é de mim que você vai conseguir." Agora descobrir os fatos já era uma quesão ainda maior. Extrapolava a curiosidade. E a honra. Durante vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, eu só queria saber:

- Gisele, cara Gisele: o que fizestes tu?

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Um amigo de Gisele II

Esse era apenas um dos muitos hábitos incomuns que havia adquirido nos últimos anos.

Gisele também carregava sempre um gravador consigo. E uma agenda. Todos os seus passos – todos mesmo – estavam registrados na agenda. Até mesmo “almocei”. Assim, para não perder muito tempo anotando o que iria fazer no próximo segundo, definiu horários rígidos para tarefas cotidianas. Acordava, escovava os dentes, tomava banho, lavava as mãos, ia ao banheiro... sempre no mesmo minuto do dia. E a tarefa também possuía sempre a mesma duração. Em caso de eventualidades – como no dia da festa – ela fazia um apêndice àquela página determinada da agenda, e tudo tinha que ser anotado em um novo horário. “Nunca se sabe o que nos pode acontecer”, disse uma vez. É, eu também não entendi o que uma coisa tinha a ver com outra. Mas quando elaborei melhor a minha dúvida, ela respondeu o incansável “Não sei”, ainda que não houvesse ninguém na conversa além de mim.

Sua mãe e seu pai, dois senhores jovens muito simpáticos e bem-apessoados, não apresentavam nada de excêntrico que pudesse justificar a personalidade da filha. Tratavam-na como normalmente pais tratam filhas. A única estranheza era a de que pareciam incentivar os hábitos incomuns de Gisele. Depois que os vi pela segunda vez chamando a atenção da filha para estranhos que ouviam alguma conversa por detrás dela, perguntei “Mas então os senhores concordam que Gisele responda apenas “não sei” quando há mais de duas pessoas escutando-a?” E eles: “Sim, é mais seguro”. “Mas os senhores mesmo não agem dessa forma”. “O caso de Gisele é diferente.” “Por quê?” “Não sabemos.”

Havia cerca de um mês, eu cheguei a desconfiar que as bizarrices tinha algum motivo bastante racional e suspeito. No instante seguinte, resolvi que eu precisava dar um tempo com os seriados de suspense. Mas, depois da conversa com os pais de Gisele, minha suspeita voltou com tudo. Teria Gisele se envolvido em algum crime? (continua)

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Um amigo de Gisele

Quando conheci Gisele, ela tinha os olhos borrados de olheira. Falava pouco, pausadamente, e com calma. Não com mais de duas pessoas ao mesmo tempo. Lembro-me de uma ocasião em especial, no aniversário de uma prima em comum. Discutíamos, ela e eu, sobre o clima estranho da cidade. Nada profundo. Creio inclusive que não fosse possível haver nada mais superficial. Lá pelas tantas, aproximaram-se de nós duas amigas de minha tia. Ela calou-se num instante. Se dirigiam a palavra a Gisele, ela respondia apenas “Não sei”. Pouco lhe importava se o “não sei” fazia ou não sentido como resposta. “Soube que você é que fez o bolo, Gisele, parabéns, está muito bom!” “Não sei.” “Como não sabe? Não provou?” “Não sei.” “Mas então prove!” “Não sei.” Nem mesmo a entonação da resposta variava.

A seus conhecidos, era menos estranho o fato de ela não falar com mais de duas pessoas ao mesmo tempo, ao fato de ela não procurar saída em ocasiões como essa. Gisele era capaz de ficar horas e mais horas respondendo “Não sei” a quem quer que fosse. E, a menos que a pessoa parasse de perguntar, ela não parava de responder. Certa vez, quando já éramos mais íntimos, tive a ousadia de indagar se ela não ficava incomodada de ficar tanto tempo falando sobre nada com pessoas que muita vezes ela nem conhece. A que ela me respondeu: “Ficar, eu fico. Mas convém não me arriscar”. Confessou-me também que havia adquirido o hábito de não ingerir líquidos antes de grandes festas, porque certa vez ficou tanto tempo com a bexiga cheia que acabou com uma infecção urinária.

Esse era apenas um dos muitos hábitos incomuns que havia adquirido nos últimos anos. (e continua...)

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Dia de sol

Teka ficou satisfeita na sexta-feira, quando, ao checar a previsão do tempo para o dia seguinte, descobriu que faria sol.

Ligou para as amigas, combinou que iriam andar no parque, depois tomar sol na piscina, depois nadar um pouco, poderiam também fazer um pique-nique, tomar sorvete, água de coco... Usaria aquele vestido bonitinho, e também aquele perfume cuja fragrância em nada combinava com dias frescos.

“Bom, mas então”, pensou, “se vou na piscina, preciso marcar depilação”.

Ligou para a depiladora e marcou para as 8 horas da manhã, antes da caminhada no parque. Ficou entorpecida pela idéia de que o sábado iria render. Sentiu-se viva, entusiasmada, aflita e, principalmente, ansiosa. Pensou até mesmo em qual calça de caminhada usaria.

Então, quando o despertador tocou as 7:15 da manhã, Teka escutou barulho de chuva. Saiu da cama, abriu a janela e lá estava: uma tempestade.

“Pronto. Já era a caminhada. E talvez até piscina...”

Ligou para a depiladora. Cancelou seu horário. Estranhou algo na forma como fez isso. Sentia-se até um pouco feliz. Parecia até que o fato de poder voltar a dormir mais um pouco compensava a tristeza de que seus planos estavam indo por água abaixo, com o perdão do trocadilho.

Quando o toque do telefone acordou-a do segundo sono, já eram 10 horas.

- Ô, Teka, você viu a chuva?

- Vi. Já era nosso programa, né?

- Pois é. O negócio hoje é ficar em casa assistindo tevê.

Teka respondeu a essa afirmação com o melancólico “É o jeito...”. Mas sentiu uma estranha felicidade, similar a que sentira quando desmarcara a depilação.

Ficar em casa vendo tevê. Podia fazer isso. Não era mal fazer isso. Em verdade... de fato! Era isso! Adorava ficar em casa vendo tevê! Comendo pipoca e bebendo Coca-Cola quente. Caminhar, transpirar, sair, ter que se vestir, se arrumar, pentear o cabelo, socializar... Que coisa cansativa!

Então Teka teve um súbito momento introspectivo e descobriu toda a verdade:

“Eu é que pedi a chuva. Era o único jeito de poder fazer o que eu bem quisesse”.

Ficou apenas com uma dúvida. Se queria tanto ficar em casa, por que fez todos os planos? Por que era o “único jeito”? Por que não poderia fazer isso mesmo se o sol aparecesse?

A esse pensamento, seguiu-se um silêncio denso, profundo. Não vinha apenas dela. Vinha de fora: a chuva cessara e em seu lugar um radiante sol surgira.

- E aí, Tekinha?! Podemos ir na piscina! Passou a chuva. Quanto tempo você precisa?

- Ah, sabe o quê, Mari? Acho que vou ficar em casa mesmo. Ver tevê, comer pipoca... To mais afim.

E veio a resposta às suas indagações:

- Nossa, por que isso? Ta deprimida?

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Inteligente, saudável OU bonita?

- Senhoras, sinto em informá-las que vocês foram enganadas. Pagaram para assistir a uma palestra sobre como ser a mulher perfeita, não? Pois bem, a palestra de hoje será não sobre como ser a mulher perfeita, mas sim como a perfeição é algo impossível. Não, não se preocupem. Não será nada muito filosófico. É bem racional e prático mesmo.
Quanto ao dinheiro investido, bem... façamos assim: se ao final sentirem que o dinheiro não valeu a pena, eu o devolvo. Confiarei em você, sejam honestas por favor.

Pois bem. Serei breve. Para uma mulher ser perfeita, ela deve ser inteligente, bonita e saudável.

Nestes primeiros slides mostrarei quais são os requisitos necessários a uma mulher perfeita, seguido do tempo que deve ser disponibilizado por semana para que cada um deles seja cumprido.

Então temos aqui:

- Dormir bem: 56 h
- Trabalhar: 40 h
- Manicure: 40 min
- Academia: 7h30
- Dar atenção aos filhos e ao marido: 21h
- Tomar banho com hidratantes, esfoliantes e cremes: 3h30
- Maquiar-se, passar hidratantes no rosto, protetor solar, cremes, etc.: 35 minutos
- Escovar os dentes e passar fio dental: 56 minutos
- Comer três refeições por dia (considerando que as outras três demoram um tempo desprezível): 10h30
- Leitura diária de jornal: 3h30
- Leitura diária de literatura: 3h30
- Supermercado: 4h por semana
- Seções de drenagem linfática: 1h
- Escolher a roupa apropriada: 3h30
- Aula de língua estrangeira: 3h
- Locomoções (de carro, considerando pouco trânsito): 10h30

Total: 169h41

Total de horas em uma semana: 168h

Viram? É impossível. E isso porque nessa conta não entrou pagamento de contas, depilação, festas, escova no cabelo, médico, compra de roupas, cabeleireiro...

Por isso, relaxem. É o que eu digo. Não queiram ser perfeitas. É necessário fazer escolhas. O que vocês querem ser? Bonitas, inteligentes ou saudáveis? Os três, queridas senhoras, só quando a semana tiver oito dias...

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Na hora de escolher a profissão...

Gostaria de quebrar aqui com dois paradigmas da escolha profissional: o “sempre há tempo para outra faculdade” e o “Faça o que gosta, não o que dá dinheiro”. Já está meio tarde pra mim, e provavelmente para a maioria dos meus leitores, mas talvez ajude alguém com isso...

Em todo o caso, dois paradigmas eu mantenho: assista a aulas do curso que você pensa em fazer e converse com profissionais – bem e não ao bem sucedidos. Quanto mais você souber onde está se metendo, melhor.

Às quebras:

- É verdade que sempre há tempo para se fazer uma outra faculdade, mas pense que, se depois de formada em uma profissão a pessoa decide que “não é isso”, ela terá que ficar mais, no mínimo, quatro anos sentada em uma cadeira desconfortável estudando, terá que prestar mais um torturante vestibular e, talvez, passar mais um ano freqüentando a instituição que provavelmente concentra a maior quantidade de energia ruim por metro quadrado: o cursinho.

- “Faça o que gosta, não o que dá dinheiro” é algo relativo. Porque, de fato, não é nada legal trabalhar com algo insuportável, mas se, por exemplo, a coisa que você mais gosta na vida é comer em restaurante caro, talvez valha a pena escolher algo que você não goste taaanto assim, mas que dê um pouco mais de dinheiro. Ok, o exemplo do restaurante não foi lá muito palpável, mas pode-se pensar o mesmo de uma viagem, de cinema todo o final de semana, de uma festa de aniversário...

Enfim, eu ainda acredito que poderia haver um mundo sem “emprego” e “profissões”. Mas isso será assunto para um outro post...

terça-feira, 2 de setembro de 2008

O político desempregado

- Boa tarde a todos os senhores. Desculpe estar atrapalhando o conforto da viagem dos senhores, mas esta é a maneira que encontrei pela qual poderei estar pedindo uma pequena ajuda para os senhores para conseguir alimentar meus filhos.

Não me escondo atrás de minha doença. Nasci já cego, consegui estar trabalhando mesmo com esta minha deficiência, né, senhores, mas acontece que devido a essas condições de hoje, atualmente estou desempregado e infelizmente preciso de dinheiro para alimentar meus filhos. Sei, senhores, que tem muitas pessoas em condições iguais ou piores do que a minha, senhores, infelizmente. Nunca quis ganhar vantagem sobre ninguém, apenas quero alimentar meus filhos.

Assim, senhores, estou aqui, pedindo, por favor, uma pequena contribuições dos senhores. No caso de poderem me ajudar com uma ou outra moeda, de forma que isso não esteja afetando futuramente o bolso dos senhores. Como já disse, senhores, minha intenção não é ganhar vantagem sobre ninguém. Apenas alimentar meus filhos.

Obrigado. Obrigado. Deus te abençoe. Obrigado. Muito obrigado. Muito obrigado. Deus te abençoe. Muito obrigado. Obrigado Vai com Deus. Vai com Deus. Deus te abençoe. Muito obrigado. Obrigado. Obrigado. Obrigado. Deus te abençoe. Obrigado. Muito obrigado. Muito obrigado. Deus te abençoe. Muito obrigado. Obrigado Vai com Deus. Vai com Deus. Deus te abençoe. Muito obrigado. Obrigado. Obrigado. Obrigado. Deus te abençoe. Obrigado. Muito obrigado. Muito obrigado. Deus te abençoe. Muito obrigado. Obrigado Vai com Deus. Vai com Deus. Deus te abençoe. Muito obrigado. Obrigado. Obrigado. Obrigado. Deus te abençoe. Obrigado. Muito obrigado. Muito obrigado. Deus te abençoe. Muito obrigado. Obrigado Vai com Deus. Vai com Deus. Deus te abençoe. Muito obrigado. Obrigado. Obrigado. Obrigado. Deus te abençoe. Obrigado. Muito obrigado. Muito obrigado. Deus te abençoe. Muito obrigado. Obrigado Vai com Deus. Vai com Deus. Deus te abençoe. Muito obrigado. Obrigado.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Que Bertolt Brecht fale por mim

O trecho que segue é de uma peça do Brecht chamada A exceção e a regra.

Só não vou dizer que é uma de suas melhores peças, porque admito não ter lido muitas. De qualquer forma, recomendo, não só a leitura deste pequeno trecho que aparece no começo da obra, como a de toda ela.

“Vejam bem o procedimento desta gente:
Estranhável, conquanto não pareça estranho
Difícil de explicar, embora tão comum
Difícil de entender, embora seja a regra.
Até o mínimo gesto, simples na aparência,
Olhem desconfiados! Perguntem
Se é necessário, a começar do mais comum!
E, por favor, não achem natural
O que acontece e torna a acontecer
Não se deve dizer que nada é natural!
Numa época de confusão e sangue,
Desordem ordenada, arbítrio de propósito,
Humanidade desumanizada
Para que imutável não se considere
Nada"